Luis Eduardo Pacifici Rangel (Engenheiro Agrônomo, membro do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), ex-Secretário de Defesa Agropecuária e Ex-Diretor de Análise Econômica e Políticas Públicas do MAPA).
Carlos Ramos Venâncio (Engenheiro Agrônomo, ex-Coordenador-Geral de Agrotóxicos e Afins do MAPA)
A produção agropecuária brasileira vem se reinventando dia a dia, buscando alternativas que a tornem ainda mais sustentável. O uso de organismos biológicos para controle de pragas e doenças nas lavouras não é uma novidade, mas vem ganhando escala surpreendente nos últimos anos.
O Bacillus thuringiensis, por exemplo, foi descoberto em 1911 passando a ser utilizado como inseticida na França em 1938, e nos Estados Unidos na década de 1950. No Brasil, o primeiro registro remonta a década de 1980 e vigora até hoje (Praça, 2007).
Fundamento básico do Manejo Integrado de Pragas, o uso de estratégias combinadas, desde o monitoramento até o uso gradual e produtos fitossanitários, sempre considerou os microrganismos como alternativas necessárias para o sucesso da prática. Entretanto, o número de alternativas disponíveis no mercado era muito reduzido, até 10 anos atrás (Colmenarez, 2016).
Diversas biofábricas foram sendo implementadas para produzir inimigos naturais para o controle de pragas, como os casos de sucesso na cana-de-açúcar com a Cotesia flavipes e os Trichogramma spp., atendendo mais de 3 Milhões de hectares no Brasil. Essa realidade começou a ser consolidada ainda na antiga lei de agrotóxicos (7.802/1989), uma vez que sempre foram considerados agrotóxicos, os organismos de controle biológico (Volpe, 2009; Parra, 2011).
De acordo com dados apresentados pela ESALQ, existem cerca de 629 produtos biológicos registrados no Brasil para controle de pragas. Aproximadamente 20% dos produtores rurais no planeta adotam esses bioinsumos, sendo que no Brasil 55% das propriedades os utilizam, contra apenas 6% nos Estados Unidos. Considerando os bioestimulantes, a relação é de 50% no Brasil contra 16% nos Estados Unidos. Além disso, o Brasil conta com pelo menos 170 Biofábricas, podendo tratar uma área de aproximadamente 25 Milhões de hectares e um mercado que cresce até 20% ao ano (FAPESP, 2024).
Os dados oficiais do MAPA, disponibilizados na sua página eletrônica na internet, apresentam um número de 803 produtos registrados de baixo risco, somados os produtos biológicos e os produtos com uso aprovado para agricultura orgânica. Entretanto, esse número inclui produtos como feromônios e outros que não seriam passíveis de uma produção “on farm” (MAPA, 2024c).
Durante a década de 2000, diversas abordagens regulatórias foram sendo desenvolvidas para permitir a ambientação dessas tecnologias nas exigências da legislação. A publicação das normas em 2005 e 2006, foram importantes para o tratamento diferenciado para produtos biológicos (Bortoloti, 2024).
Mais recentemente, as normas dos insumos microbiológicos foram atualizadas por meio da Portaria Conjunta MAPA/IBAMA/ANVISA n° 1/2023. Além dessas, em 2009, os produtos fitossanitários da agricultura orgânica foram incluídos de maneira diferenciada nos procedimentos de registro na antiga Lei, permitindo pela primeira vez, uma abordagem para a produção própria de agrotóxicos, hoje em dia chamado de “on farm” (De Souza, 2023; Brasil, 2023).
O contexto dos inoculantes é um pouco diferente. Regidos pela legislação de fertilizantes que também engloba os corretivos, não é possível encontrar qualquer menção a produção desses insumos para uso próprio de maneira explicita, seja na Lei nº 6.894, de 16 de dezembro de 1980, nem em seus regulamentos. Entretanto, a compostagem, uma prática amplamente incentivada aos produtores, vêm reciclando resíduos e gerando fertilizantes orgânicos, em linha com as políticas de mitigação de gases de efeito estufa. Para sua comercialização, no entanto, precisam do devido registro no MAPA, a semelhança dos insumos de controle biológico (Brasil, 1980; Vidal, 2020; Valente, 2024).
A dispensa de registro para produção de agrotóxicos para uso próprio foi regulamentada originalmente por meio do Decreto n° 6.913/2009, onde foram “isentos de registro os produtos fitossanitários com uso aprovado para a agricultura orgânica produzidos exclusivamente para uso próprio” (Brasil, 2009).
Já no Decreto n° 10.833/2021, a isenção em tela foi aclarada no sentido de também especificar os sistemas de cultivos onde a produção própria de produtos fitossanitários com uso aprovado para a agricultura orgânica seria aceita, sendo mantida a frase original disposta no parágrafo anterior e sendo incluído: “em sistemas de produção orgânica ou convencional” (Brasil, 2021).
O conceito de produção própria foi estabelecido posteriormente, pelo atual Programa Nacional de Bioinsumos, como: “produção de condicionadores de solo, inoculantes, produtos fitossanitários, de comunidade de microrganismos com uso aprovado para a agricultura orgânica ou de agente biológico de controle, regulamentado em norma específica pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a ser utilizada exclusivamente em área de produção agrícola pertencente a mesma pessoa física ou jurídica ou em áreas de produtores rurais em regime de associação constituída para esta finalidade” (MAPA, 2024a).
Mesmo com essas definições, resta considerar que esteve sempre vedado o comércio desses produtos, mesmo estando isentos de registro. O registro é peça fundamental e inseparável do direito de comércio dessas substâncias. O registro, essencialmente, deve assegurar o comércio justo, numa relação idônea entre produtores e consumidores, balizadas pelas regras de identidade e qualidade estabelecidas pelo Estado.
Pela legislação vigente, nos casos de produtos fitossanitários, apenas os produtos aprovados para a agricultura orgânica podem estar sujeitos da isenção de registro, quando produzidos para uso próprio. E para que sejam aprovados devem estar devidamente listados nas normas do Ministério da Agricultura e Pecuária por meio de suas “Especificações de Referência” (Brasil, 2021).
Hoje existem 60 especificações de referência devidamente publicadas contendo desde inimigos naturais como o Aphidius colemani, Phytoseiulus longipes e Neoseiulus californicus, dois ácaros predadores, além do Trichogramma galloi, um parasitóide clássico. Para os microrganismos de controle, temos o Metarhizium anisopliae, Trichoderma stromaticum, Beauveria bassiana, Bacillus subtilis, além é claro, do Bacillus thuringiensis (MAPA, 2024a).
A nova legislação de agrotóxicos (Lei n° 14.785/23) traz a obrigatoriedade de cadastro de todos os “estabelecimentos produtores, manipuladores, importadores e exportadores, as instituições dedicadas à pesquisa e à experimentação, os distribuidores, os profissionais legalmente habilitados, os agricultores usuários e as prestadoras de serviços para terceiros na aplicação de agrotóxicos” (art. 22, §1º), e nesse caso, fica clara também a necessidade do cadastro de todas as biofábricas, mesmo que para produção própria (Brasil, 2023).
A mesma legislação instituí o Sistema Unificado de Informação, Petição e Avaliação Eletrônica (Sispa), que tem como um dos objetivos implementar, manter e disponibilizar dados e informações sobre TODOS os produtos e produtores do país, com comercialização ou não (Art. 58, Lei n° 14.785/23) o que abrange os fundamentos do Art. 22, da mesma lei, que cria o Sistema Unificado de Cadastro e de Utilização de Agrotóxicos (Brasil, 2023).
Portanto, os agricultores que produzem produtos fitossanitários para uso próprio, mesmo isentos de registro, precisam estar cadastrados no sistema integrado do Ministério da Agricultura e Pecuária. É o que sugere Munhoz (2024): “que o agricultor que produz bioinsumos para uso próprio obrigado, a partir de janeiro de 2025, a solicitar registro ou pedir autorização ao poder público como faz uma indústria”.
No entanto, a expectativa que o SISPA sintetize, em 360 dias, o ambiente de transação de dados entre todos os atores especificados na Lei, considerando todo a cadeia de produção, comércio, uso de agrotóxicos, é utópica, desacoplada de qualquer realidade já experimentada no Governo Brasileiro, pelo menos nos últimos 20 anos.
Fabricantes, revendas, engenheiros agrônomos prescritores de receita, aplicadores treinados e agricultores, deverão estar cadastrados ou registrados partir de dezembro de 2024. Provavelmente, qualquer solução a ser apresentada não deverá contemplar a todas as funcionalidades previstas na Lei n° 14.785/23, em sua primeira versão. E com certeza, o cadastro de agricultores com instalações “on farm” não estará entre as prioridades.
Quando isso acontece, mesmo sendo compreensível, devemos considerar o que reza a legislação concorrente.
A Lei n° 9.784 de 29 de janeiro de 1999, que regula os processos na administração pública, traz claramente que deve ser obedecido, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Em especial, consideramos a observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados, nesse caso o direito ao registro ou cadastro junto a nova lei de agrotóxicos (Brasil, 1999).
Mais recentemente, com o advento da Lei n° 13.874, de 20 de setembro de 2019, temos que “a liberação da licença, da autorização, da concessão, da inscrição, da permissão, do credenciamento, ou do cadastro (grifo nosso), transcorrido o prazo fixado, e com o silêncio da autoridade competente, refletir-se-á em aprovação tácita para todos os efeitos” (Brasil, 2019).
Na própria lei de agrotóxicos o legislador explicita que deverá haver simplificação e desburocratização de procedimentos e a redução de custos e do tempo necessário para a conclusão das análises dos processos (Art. 2º, §17).
Em um recente artigo publicado, especialistas analisaram como a transição regulatória poderia ser feita, considerando que mais de 51 atos normativos infralegais ainda versam de maneira efetiva sobre temas da nova Lei de Agrotóxicos. Com as conclusões dos autores, é possível compreender que os ritos administrativos mais orientados a questões específicas devem permanecer válidos, a fim de resguardar a eficiência da administração pública e a segurança jurídica (Rangel et al., 2024).
Desta forma, a única conclusão possível é que não existe qualquer disposição acerca de proibição da produção “on farm”, ou seja, de que produtos agrotóxicos aprovados para agricultura orgânica que sejam produzidos para uso próprio, mesmo tendo encerrado o prazo de 360 dias para a implementação do SISPA na Lei n° 14.785/2023 de 21 de dezembro de 2024, contados a partir da sua publicação. Existem, portanto, garantias ao produtor rural para mantê-lo produzindo seus bioinsumos. Para isso, devemos considerar as diversas Leis e normas infralegais em uma interpretação quanto a sua especialidade ou temporalidade, mas principalmente sobre sua conexão com os objetivos do Estado.
Considerando a ausência de regulamentação específica quanto ao cadastro de biofábricas para uso próprio, entendemos como adequada ao detentor de tal estrutura a apresentação de protocolo eletrônico no âmbito do Ministério da Agricultura e Pecuária. Esse procedimento deve cumprir a exigência legal presente no Art. 22, § 1º, da Lei n° 14.875/2023, e garantir de pleno direito, a produção “on farm”, enquanto perdurar à inexistência de um sistema ou de ao menos orientações administrativas específicas para o cadastro (STJ, 2010).
Há ainda uma questão a observar, que pode resolver tacitamente esse caso. Em atendimento ao Decreto nº 10.139, de 28 de novembro de 2019, o Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e/ou Utilizadoras de Recursos Ambientais (CTF/APP), prevê a inscrição de empresas que se enquadrariam nessa situação.
Esse procedimento, que pode ser realizado pelo órgão competente (federal, distrital, estadual ou municipal), no caso de licença de instalação ou operação de empreendimento e para exercício de atividades, como no caso dos bioinsumos, resolveria a questão.
E nesse caso, valeria uma análise sobre uma redundância regulatória. Embora não exista uma proibição legal expressa de haver redundância de registros ou licenças, é recomendável que os órgãos públicos coordenem suas ações para evitar registros concorrentes sobre o mesmo produto, promovendo a eficiência administrativa e evitando conflitos de competência (Brasil, 2019).
Com tudo isso, temos ainda em fase avançada no Congresso Nacional a tramitação consolidada de dois Projetos de Lei que versam sobre Bioinsumos. Com a edição desse novo marco legal, será possível apartar os produtos de controle biológico e outras dezenas de produtos de origem natural, do rol de agrotóxicos, ou mesmo de fertilizantes sintéticos. A nova lei trará regras para tramitação e tratará dos casos de produção própria (“on farm”) como isenta de registro. Ao que tudo indica, o texto atual em tramitação, prevê essa isenção, quando não houver comercialização.
Mesmo que exista uma legitima discussão sobre a necessidade de uma regulamentação específica sobre esses produtos, estes continuam sendo considerados fundamentais para diversas políticas já em andamento, como a Política Nacional de Agroecologia e Agricultura Orgânica e a Política Nacional Sobre Mudanças do Clima. Ou seja, mesmo que haja um considerável nível de insegurança jurídica mensurada pelos especialistas, não é razoável pensar em risco para a descontinuidade do avanço da adoção de práticas sustentáveis reconhecidas, como são evidentemente os bioinsumos, com uma eventual restrição pelo Estado.
Definitivamente, não será a falta de um sistema eletrônico que recepcione o cadastro que interromperá a trajetória ascendente de produção e uso de tecnologias biológicas pelos agricultores. Nem tampouco uma nova legislação, que está em fase final das discussões no Congresso Nacional, definirá todas as balizas do processo regulatório (STJ, 2010).
Muitas questões ainda serão abordadas sobre esse tema. O uso próprio de bioinsumos deverá ser alvo de um novo modelo de análise de risco, inovador e específico, considerando questões de impacto a saúde ao meio ambiente, quando da introdução de organismos exóticos, biotecnologia, ou mesmo de questões de proteção intelectual. É o que sugere o recente artigo de Gazzoni e Hungria publicado pelo CCAS, que apresenta a visão do “General Directorate of Health and Food Safety” (DG Santé), sobre os problemas ocasionados por microrganismos utilizados na agricultura, como Bacillus amyloliquefaciens e B. thuringiensis (Bt), identificando impactos sobre a biodiversidade e contaminações em alimentos, citando Bonis et al. (2021).
É impensável, no entanto, considerar que todo o desenvolvimento tecnológico desses bioinsumos, que consumiu centenas de milhões de reais de empresas privadas ou públicas (A Embrapa é uma das maiores detentoras de tecnologias disponíveis), não tenha um sistema de remuneração adequado. Temos que lembrar do caso anteriores de conflito, como com as sementes-salvas, que oportunizaram estratégias de compensação entre obtentores e usuários e possibilitaram hoje um mercado estável e rentável para ambos (Yokoyama, 2014; De Miranda, 2023).
A dinâmica da regulação deve ser proporcional a necessidade do estabelecimento do mercado, nesse caso, da continuidade de investimento em soluções sustentáveis para a agropecuária, mas principalmente, para sua adoção universal.
Produtos incríveis parados nas prateleiras, não mudam a realidade da agropecuária. O produtor quer eficiência no uso do insumo e renda com o produto da sua safra. Bioinsumos possíveis e viáveis certamente estarão no mercado e os modelos de negócio se adaptarão à realidade dinâmica da agropecuária sustentável, com respeito a proteção intelectual e a segurança sanitária.
Referências:
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BONIS, Mathilde et al. Comparative phenotypic, genotypic and genomic analyses of Bacillus thuringiensis associated with foodborne outbreaks in France. PloS one, v. 16, n. 2, p. e0246885, 2021.
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