O presidente do Sri Lanka, Gotabaya Rajapaksa, está em vias de renunciar ao cargo.
Para entender o que ocorreu, lembramos sua promessa, na campanha eleitoral de 2019, referente à transição dos agricultores do país para a agricultura orgânica (http://bitly.ws/s9Fv). Em abril de 2020, eleito, Rajapaksa cumpriu a promessa, proibindo a importação e uso de fertilizantes e pesticidas sintéticos, conforme publicado na Gazette, o Diário Oficial do Sri Lanka (http://bitly.ws/s9FA). Determinou, também, que 2 milhões de agricultores do país se tornassem produtores orgânicos (http://bitly.ws/s9Gd).
Após implantar a política, o resultado foi rápido. E avassalador. De acordo com o site Foreign Policy (http://bitly.ws/s9zK) opostamente ao que o governo asseverou, a produção de arroz reduziu em um terço, já nos primeiros seis meses, também referido pelo The Indian Express (http://bitly.ws/s9FL). Isso ocorreu quando ainda havia sobras de fertilizantes das safras anteriores, imagine-se nas seguintes. O Sri Lanka, autossuficiente e exportador de arroz (http://bitly.ws/s9Af), foi forçado a importar US$450 milhões em arroz e aceitar doações do produto (http://bitly.ws/s9Ak); de acordo com a mesma fonte, isso não impediu que os preços ao consumidor cingalês aumentassem cerca de 50%.
A proibição também afetou negativamente a cultura de chá, principal produto de exportação e fonte de divisas do país (http://bitly.ws/s9Ak). A produtividade da colheita de chá caiu 50%, mesmo índice para a cultura do milho, além de reduções de 35% para o arroz e 30% para o coco, como informa uma agência do governo dos Estados Unidos (http://bitly.ws/s9G2). Com a perspectiva de uma crise cambial, em novembro de 2021 (apenas 6 meses após a entrada em vigor da lei), o governo levantou parcialmente o banimento, para as culturas de chá, seringueira e coco (http://bitly.ws/s9G9). Tarde demais, a crise havia se instalado (http://bitly.ws/s9DP), embora não se devesse exclusivamente à mudança na política agrícola.
Hilal Elver, Relatora Especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, coordenou, em 2014, a elaboração de um relatório onde propôs o banimento de todos os pesticidas usados na agricultura e na saúde (http://bitly.ws/s9Go), em caráter global. Sua alegação era que pesticidas matam pessoas, são dispensáveis, e que o mundo deve ser alimentado exclusivamente com lavouras agroecológicas.
Para auxiliar a Sra. Elver a comprovar a factibilidade de sua proposta, publicamos um artigo cujo título é “Adeus aos pesticidas” (http://bitly.ws/s5G8). Nele, se propunha uma abordagem científica para testar a hipótese de que é possível produzir alimentos em quantidade e com qualidade, para abastecer as necessidades humanas, sem o uso de pesticidas. Metodologia baseada em ciência, sem vieses ideológicos.
Seguindo o método científico básico, antes de qualquer recomendação para uso extensivo, dever-se-ia iniciar com um pequeno teste de agricultura sem pesticidas. Primeiro em algumas lavouras, após em um município, depois em um estado, para chegar a um país e, posteriormente, em outros países. A etapa seguinte só ocorreria se todos os testes anteriores demonstrassem, inequivocamente, ser possível produzir com qualidade e rentabilidade, sem perdas para os produtores, sem onerar o consumidor e sem prejudicar o país.
O discurso de agricultura sem pesticidas tem sido recorrente. Entretanto, o discurso nunca é acompanhado de uma demonstração, além de qualquer dúvida razoável, de sua factibilidade como forma de produção rural capaz de, incondicionalmente, fornecer alimentos em quantidade e qualidade suficientes para enfrentar o quadro da fome no mundo.
A Sra. Helver não se referia à agricultura orgânica, que também usa pesticidas, embora não permitindo o uso dos sintéticos. De qualquer maneira, nossa menção à agricultura orgânica, feita no início do artigo, não significa que o sistema seja inviável, mesmo porque ele tem sido exitoso em quase todos os países onde é utilizada conforme as regras. A questão aqui levantada diz respeito à escala de produção, considerando sua evolução no tempo.
Atender a nichos, como ocorre hoje no mercado de produtos orgânicos, ocupando espaços progressivamente maiores, não significa, necessariamente, ter capacidade para, do dia para a noite, ser expandida de forma a bem atender a humanidade, manu militare, ou seja, por imposição legal. Eventualmente o desenvolvimento tecnológico virá permitir tal possibilidade que, no momento, configura apenas uma hipótese.
De acordo com o site do jornal Le Monde (http://bitly.ws/s9Gs), entre o final de 2021 e o início de 2022, a aplicação da lei conduziu a consequências que extrapolaram as propriedades agrícolas. A imprensa do Sri Lanka informou que, após intensos protestos nas ruas, inflação crescente e o colapso da moeda do Sri Lanka, o governo finalmente suspendeu a política para várias culturas, como chá, borracha e coco (produtos de exportação), embora ainda insista em mantê-la para aquelas destinadas ao consumo interno (http://bitly.ws/s9Gv).
A intervenção legal na forma de produção agrícola coincidiu com outros eventos que perturbaram a economia do país, em função da pandemia, como a redução do fluxo turístico, criando uma crise cambial. Para fornecer uma visão do colapso da moeda de Sri Lanka, quando o presidente Rajapaksa defendeu a proposta de banimento de insumos agrícolas, na campanha eleitoral, uma rúpia do Sri Lanka valia US$ 0,0055, de acordo com o Banco Central do país. Quando a lei foi implantada, a taxa de câmbio era de US$1=LKR0,0051. No início de maio de 2022 havia despencado para 0,0028 rúpias por dólar (http://bitly.ws/s9Bh). Na prática, o cidadão cingalês passou a pagar o dobro do preço por qualquer produto importado, ao tempo em que o governo enfrentou dificuldades para honrar empréstimos contraídos no exterior, como informou o Wall Street Journal (http://bitly.ws/s9EJ).
O governo foi obrigado a distribuir US$ 200 milhões aos agricultores, como compensação direta pelas perdas, além de US$ 149 milhões em subsídios de preços aos produtores de arroz (http://bitly.ws/s9DR). Não obstante, os agricultores criticaram duramente os valores recebidos, por situarem-se muito abaixo das perdas financeiras, sequer compensando os sofrimentos das famílias de agricultores no período, além de excluírem muitos agricultores do programa (http://bitly.ws/s9DT).
Fontes internacionais estimam que, tão-somente a queda na produção de chá, tenha resultado em perdas de US$425 milhões, e apenas na primeira safra após a lei (http://bitly.ws/s9DW). A exportação de chá era a principal fonte de divisas do Sri Lanka, o que dá uma dimensão do desastre (http://bitly.ws/s9E8).
Os custos humanos foram ainda maiores, alguns difíceis de aquilatar pelas métricas da Economia. Em 2020, o país orgulhosamente havia alcançado o status de renda média alta (http://bitly.ws/s9Eg). Em 2022, meio milhão de pessoas voltaram à pobreza (http://bitly.ws/s9Ei), a grande maioria no meio rural. Os economistas do país sugeriram ao governo que deixe de pagar suas dívidas para comprar suprimentos essenciais para a população (http://bitly.ws/s9Ej), o que aparenta ser uma medida extrema.
Tudo o que apontamos nos dois exemplos acima serve para sinalizar que uma política pública é um fato muito sério, afeta milhões de cidadãos, dependendo da população do país. A alimentação é algo sagrado, uma necessidade fundamental do ser humano. Portanto, é exigido o máximo cuidado ao exarar uma política pública, que sempre deve ser fundada na melhor Ciência. E com cuidado ainda maior quando se trata de alimentação. Reiteramos que não há nada contra a agricultura orgânica em si, mas contra vieses ideológicos em políticas públicas.
No caso do Sri Lanka, a política pública foi responsável pela catástrofe no setor agrícola? Sim. Mas essa culpa precisa ser compartilhada com os que propagam um discurso com viés ideológico extremado. Distorceram a agricultura orgânica, apresentando-a como uma medida que permitiria reduzir, de imediato, os subsídios e importações de fertilizantes e pesticidas, sem comprometer o volume da produção e sua qualidade comercial, sem afetar o abastecimento e preços aos consumidores e sem prejudicar o país. O viés ideológico contaminou uma política pública.
O site Foreign Policy afirma que tudo se iniciou em 2016, quando Rajapaksa, induziu a criação da ONG chamada Viyath Maga (http://www.viyathmaga.org/). A ONG descreve sua visão como sendo “aproveitar o potencial nascente dos profissionais, acadêmicos e empresários para influenciar efetivamente o desenvolvimento moral e material do Sri Lanka”. Sua missão é “Fornecer um fórum comum para profissionais e acadêmicos do Sri Lanka, com patriotismo e senso de propósito, vivendo aqui e no exterior, em rede pela nobre causa de influenciar os formuladores de políticas e legisladores para orientar o país no caminho correto, com responsabilidade.”
Excelente, perfeito enquanto discurso! Entretanto, apesar das alegações de conhecimento tecnológico, e ainda de acordo com o site Foreign Policy, os principais especialistas agrícolas do Sri Lanka foram excluídos da elaboração da proposta de política agrícola, encomendada pelo candidato a presidente. A proposta lastreava-se na eliminação de insumos modernos, sendo uma das metas implantar dois milhões de hortas orgânicas para ajudar a alimentar a população do país e usar suas florestas e pântanos para a produção de biofertilizantes, na análise do The New York Times (http://bitly.ws/s9Hb). Faltou debate e contraponto.
Como tudo aconteceu? O presidente, Rajapaksa nomeou para ministro da agricultura um membro da Viyath Maga. O qual criou uma série de comitês para implementação da política (http://bitly.ws/s9F6). Os comitês excluíram agrônomos e cientistas agrícolas do país, sendo compostos apenas por defensores de linhas como agricultura orgânica e alternativa e incluiu um médico que propagava uma relação entre produtos químicos agrícolas e doenças renais, fato que foi integralmente rebatido, com base em informações científicas e estatísticas (http://bitly.ws/s9EA).
Ao invés de metas mais contidas, como pequenos experimentos de uma centena de hortas, espalhadas pelo país, com cobertura financeira para evitar a penalização dos pequenos agricultores no caso de perdas, com assistência técnica e organização das cadeias, a proposta arrastava, de uma só tacada, o país inteiro para um grande experimento, sem qualquer paralelo na História Mundial. A política pública foi contaminada por questões ideológicas. Deu no que deu!
Não foi por falta de aviso! A partir do momento em que o plano foi anunciado, agrônomos do Sri Lanka e de outros países alertaram que a produção agrícola cairia substancialmente (http://bitly.ws/s9EX). Em resposta, o governo alegou que aumentaria a produção de estrume e outros fertilizantes orgânicos para substituir fertilizantes sintéticos importados. O discurso não se fez acompanhar de nenhuma maneira prática de produzir fertilizante orgânico suficiente para substituir os sintéticos.
Vamos fazer uma pausa e olhar para o Brasil. No livro “Agricultura Fatos e Mitos” (http://bitly.ws/s9Fd) é apresentado um cálculo de quanto esterco seria necessário para substituir fertilizantes sintéticos no Brasil. O montante é um absurdo de 2,9 bilhões de toneladas a cada ano! Para produzi-lo, precisaríamos confinar 195 milhões de bovinos adultos. Para transportá-lo, seriam necessárias 145 milhões de viagens de caminhão --mas o Brasil tem pouco mais de 2 milhões de caminhões rodando nas estradas. O custo do frete equivaleria a mais de um terço da produção agrícola do país. Comparando com a nossa realidade, fica mais fácil entender porque não daria certo, nem no Sri Lanka.
Voltemo-nos, então, para o conhecimento científico. A revista Nature já havia publicado, em 2012 (ou seja, 8 anos antes da lei do Sri Lanka), a informação de que cultivos orgânicos reduzem a produtividade média em 34%, quando comparados a convencionais (http://bitly.ws/s9HH). Logo são necessários 34% mais área para a mesma produção, área esta que, provavelmente provirá de desmatamento.
E já que mencionamos impacto ambiental, o Dr. H. L. Tuomisto e colaboradores publicaram um artigo concluindo que a agricultura orgânica, comparada à convencional, apresenta maiores emissões de amônia e de óxido nitroso, maior lixiviação de nitrogênio, potencial mais elevado de eutrofização e acidificação do solo por unidade de produção (http://bitly.ws/s9Hi). Nada disso foi levado em consideração na legislação do Sri Lanka, para evitar os efeitos deletérios previstos. Se a política pública prevesse um escalonamento, avançando conforme houvesse condições, e após bons resultados, nada disso teria ocorrido.
Poderiam ser elencados inúmeros outros artigos científicos mostrando que agricultura sustentável não é antagônica ao uso de insumos modernos, sejam eles fertilizantes, pesticidas ou variedades desenvolvidas com ferramentas biotecnológicas. É bom para o produtor, para o consumidor e para o ambiente. Basta seguir, rigorosamente, as boas práticas agrícolas. Agricultura praticada sem insumos modernos atende a três públicos: 1) produtores orgânicos; 2) produtores miseráveis, de subsistência, mormente na África e outros países pobres, que não possuem conhecimento nem acesso a recursos para usar tecnologia avançada; 3) consumidores que, por princípio, não se importam em pagar mais caro por alimentos produzidos sem o uso de insumos modernos. Todos devem ser respeitados.
O exemplo do Sri Lanka, cujas consequências ainda perdurarão por alguns anos, é um alerta para os discursos fantasiosos, sem lastro científico ou factibilidade, sejam eles antivacinas ou antipesticidas. Para os formuladores de políticas públicas, vale a reminiscência: tenham em conta a lógica contida no texto “Adeus aos pesticidas” (http://bitly.ws/s5G8).
Façam como os cientistas, testem em microescala, depois pequena, média até chegar à macro escala. Avanços na escala apenas devem ocorrer se os resultados sempre forem benéficos, em cada uma das etapas anteriores. Utilizem os conhecimentos científicos comprovados, não se deixem seduzir por extremismos ideológicos sem a devida fundamentação. Caso contrário, é melhor parar antes de causar um desastre