POSICIONAMENTO DO CCAS EM RELAÇÃO AOS VETOS DO NOVO MARCO LEGAL DOS PESTICIDAS
Ontem foi publicada a Lei 14.785/2023, que dispõe sobre o novo marco regulatório dos pesticidas e dos produtos de controle ambiental.
A discussão sobre um novo marco regulatório para esses produtos foi realizada no Congresso Nacional por quase 25 anos e, como ocorre em todos os sistemas políticos democráticos, muitas alterações foram feitas em relação ao texto inicialmente proposto, sendo que as mais significativas ocorreram na Comissão do Meio Ambiente do Senado Federal, com a aprovação do relatório apresentado pelo Senador Fabiano Contarato.
Era esperado que, após todos os debates realizados, o projeto de lei aprovado pelo plenário do Senado Federal em votação simbólica fosse integramente sancionado.
Todavia, o texto foi sancionado com vetos. As justificativas apresentadas para os vetos apresentados foram de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. Mesmo com os vetos apresentados, não há dúvidas de que a nova legislação traz avanços significativos, que eram mais do que necessários para regular a pujança da agricultura brasileira.
Entre esses avanços podemos citar: a sua abrangência, com foco maior na agricultura; a consolidação de definições previstas em legislações esparsas; a criação de sistemas eletrônicos unificados de informação, petição e avaliação (SISPA) e, também, de cadastro de utilização; a coordenação do processo de registro pelo órgão registrante; a avaliação dos produtos com base na avaliação de risco; o estabelecimento de prazos mais razoáveis de avaliação e reanálise; o aumento da responsabilidade de todos agentes envolvidos na atividade; e uma punição mais severa para os crimes de contrabando.
Contudo, em que pese esses avanços significativos, os vetos apresentados acabaram por manter alguns dos entraves já existentes (e que se esperava superar com a publicação de um novo marco regulatório), no que se refere à reavaliação (reanálise) das moléculas e nas alterações das formulações já registradas.
De uma forma resumida, os vetos afastaram as propostas de coordenação dos procedimentos de reanálise e de alterações pós-registro pelos órgãos registrantes, bem como a obtenção de recursos financeiros, por meio da cobrança de taxas, para o exercício dessas atividades.
a) DA COMPETÊNCIA DOS ÓRGÃOS REGISTRANTES NO PROCEDIMENTO DE REANÁLISE
Como o próprio nome indica, (re)analisar os riscos significa avaliar novamente uma molécula que já teve o seu registro concedido, a fim de entender se houve alguma alteração do risco, ou seja, da probabilidade de ocorrer um efeito nocivo à saúde ou ao meio ambiente.
A Presidência da República vetou a competência que havia sido atribuída aos órgãos registrantes para coordenar esse procedimento. A justificativa apresentada foi no sentido de que o dispositivo era inconstitucional por não observar os princípios da precaução e da vedação ao retrocesso socioambiental, já que o dispositivo atribuiria “exclusivamente” ao Ministério da Agricultura e Pecuária a função de coordenar as reanálises, ainda que essas fossem motivadas por riscos toxicológicos e ecotoxicológicos. Argumentou-se que o veto “visa impedir que a ANVISA e o IBAMA percam o protagonismo técnico desse tipo de reanálise quando estiverem sendo avaliados os riscos à saúde e ao meio ambiente”.
A questão, contudo, não parecer ser a análise da constitucionalidade desse dispositivo. Longe de se ter uma discussão sobre a constitucionalidade do dispositivo, o que se percebe é a opção do Executivo em manter o sistema de reanálise sem um gestor. “Coordenar” não é exercer a competência com “exclusividade”, mas, sim, eleger um dos órgãos para gerenciar o procedimento que deve, necessariamente, contar com a participação dos órgãos da saúde, do meio ambiente e da agricultura.
O novo marco regulatório estabelece que a avaliação e a reanálise são baseados na avaliação de riscos envolvidos. A avaliação de risco é um procedimento científico e sistemático que inclui: a) identificação do perigo, avaliação da dose-resposta (caracterização do perigo), avaliação da exposição à substância e caracterização do risco; b) comunicação dos riscos; e c) gestão dos riscos, que consiste em ponderar fatores econômicos, sociais e regulatórios, bem como os efeitos sobre a saúde humana e o meio ambiente, selecionando opções apropriadas para proteger a saúde e o meio ambiente.
A ANVISA e o IBAMA possuem um papel fundamental na avaliação de risco, já que a lei confere a esses órgãos a competência para analisar e homologar a avaliação de risco toxicológico ou ambiental. Nesse sentido, o papel conferido ao Ministério da Agricultura e Pecuária pelo Projeto de Lei 1459/2022 não excluía a competência desses órgãos de realizarem a análise de riscos dos aspectos toxicológicos e ambientais, mas apenas o elegia como um coordenar para esse procedimento.
Ao longo desses 30 anos de vigência da Lei 7.802/89, o que se viu nos processos de reavaliação foram grandes embates, tendo, de um lado, as empresas fabricantes e os produtores e, de outro, o órgão reavaliador, em razão da falta de um procedimento pré-estabelecido que garantisse o contraditório; a possibilidade de apresentação de estudos para defesa da molécula e a ausência de medidas de gestão de risco que garantissem que o produtor rural não ficaria de um hora para outra sem qualquer alternativa de controle.
A atribuição de um coordenador para o processo tinha por objetivo, portanto, estabelecer que essa gestão dos riscos seria feita com lastro e foco no método científico consagrado globalmente; a concatenação das ações adotadas para reanálises toxicológicas, ambientais ou de eficácia; com o estabelecimento de regulamentação única para todo o tipo de reavaliação, com a participação dos órgãos da saúde, do meio ambiente e agricultura; com a exigência do desenvolvimento prévio de um plano fitossanitário de substituição do produto, com vistas ao controle de alvos biológicos que porventura possam ficar sem alternativas para manejo integrado de pragas, na eventual superveniência do banimento de uma molécula, uma vez concluído o processo de reanálise.
O parágrafo 10° do artigo 3° da Lei[1] já garante o protagonismo dos órgãos da saúde e do meio ambiente, ao determinar que será feita a avaliação de risco nos casos de reanálise. Retirar a figura de um coordenar só irá atrasar o processo e manter os conflitos atualmente existentes, decorrentes justamente da falta de um coordenador que possa trazer transparência e clareza ao procedimento.
Ainda no tocante à reanálise, também foi vetado o parágrafo 2° do artigo 29, que estabelecia que “os pedidos de registro de produtos à base do ingrediente ativo em reanálise poderão ser deferidos pelo órgão federal responsável pelo setor da agricultura enquanto não concluir sua reanálise”, sob a alegação de que esse dispositivo coloca em risco a vida, a saúde e o meio ambiente.
Há incoerência no veto proposto. Primeiro porque o caput[2] do artigo 29 desta lei mantém a previsão para avaliação dos pleitos de registro e pós-registro, bem como a comercialização, a produção, a importação e o uso dos produtos em reanálise.
Não é coerente manter a permissão para que haja a avaliação, mas impedir a emissão do certificado de registro, que é fruto da avaliação. Essa contradição não é uma medida eficiente para administração pública. De outra parte, os ativos em reanálise já foram avaliados e são comercializados e usados há anos no Brasil. Há na lei disposição expressa que mantém a comercialização e o uso desses produtos, o que retira qualquer fundamento legal para o veto aposto.
Impedir que sejam emitidos novos registros à base dos mesmos ativos que permanecem sendo usados não traz nenhuma segurança adicional à saúde e ao meio ambiente, além de ser uma medida não isonômica e que viola, inclusive, o art. 32 da própria lei sancionada[3].
b) DA COMPETÊNCIA DOS ÓRGÃOS REGISTRANTES PARA AVALIAR ALTERAÇÕES APÓS A CONCESSÃO DO REGISTRO.
Foram vetados os incisos I, II e III do caput do art. 27 do Projeto de Lei 1450/2022, por se entender que as alterações do processo produtivo, das especificações do produto técnico e formulado e das alterações de matérias-primas, de outros ingredientes ou de aditivos de agrotóxicos e de produtos de controle ambiental não poderiam ser avaliadas tecnicamente pelo órgão registrante (MAPA ou IBAMA a depender do tipo de produto).
Contudo, ao vetar os referidos dispositivos, a lei deixou de prever como serão feitas as análises dessas alterações. O veto cria um vácuo legal, pois toda a sistemática adotada pela nova lei centralizava nos órgãos registrantes a avaliação dos pedidos de alteração pós-registro. O que não significa, contudo, que, em casos de alteração de risco, não seja necessário apresentar uma nova avaliação de risco para a ANVISA e o IBAMA para análise e homologação, se cabível.
O art. 28, que também foi vetado, estabelecia a previsão para solicitação de informações para os demais órgãos sempre que houvesse a necessidade de se reanalisar os riscos envolvidos.
c) DA REMUNERAÇÃO PELOS SERVIÇOS DE AVALIAÇÃO E REGISTRO.
Não existia previsão na Lei 7.802/89, atualmente revogada, quanto à cobrança de taxas de avaliação de registro. O Ministério da Agricultura e Pecuária nunca cobrou taxa para realizar a avaliação da eficácia agronômica dos produtos que lhe eram submetidos e para emitir os respectivos cerificados de registro. Já o IBAMA e a ANVISA, apoiados nas leis 6.938, de 31 de agosto de 1981 e 9.782, de 26 de janeiro de 1999, respectivamente, cobravam taxas para Avaliação e Manutenção de Periculosidade Ambiental (IBAMA) e a Avaliação Toxicológica (ANVISA).
O Projeto de Lei 1459/2022 criou uma Taxa única de Avaliação e de Registro de produtos técnicos, produtos técnicos equivalentes, produtos novos, produtos formulados e produtos genéricos, de pesticidas e de produtos de controle ambiental, RET, produto atípico, produto idêntico e produto para agricultura orgânica, cujo fato gerador consistia na prestação de serviços de avaliação e de registros.
Inicialmente, esse projeto de lei já trazia o valor das taxas que seriam cobradas para cada caso, o que foi excluído na votação da Comissão do Meio Ambiente pelo Senado Federal, ao apreciar o relatório do Senador Fabiano Contarato, sob a justificativa de que o valor deveria seria detalhado na regulamentação da lei.
Em que pese a previsão contida no projeto de lei quanto à necessidade da regulamentação da lei estabelecer a fixação de base de cálculo e da alíquota da referida Taxa de Avaliação e de Registro, os artigos referentes à taxa e sua destinação foram vetados sob a argumentação de que a regra matriz de incidência tributária teria sido instituída sem os parâmetros necessários para a fixação do valor da taxa em proporção razoável com os custos da atuação estatal, o que violaria o princípio da legalidade tributária.
Diversas são as taxas cuja fixação dos valores ou critérios de cobrança são estabelecidos em legislação infralegal. A própria taxa cobrada pelo IBAMA pela avaliação e manutenção da periculosidade ambiental de agrotóxicos não tem clara a definição do fato gerador, da periodicidade, do contribuinte e mesmo assim é cobrada há anos e foi mantida com mais um veto.
A cobrança de uma taxa única e destinada ao Fundo Federal Agropecuário, representava uma importante inovação, na medida em que estabelecia que os valores arrecadados serviriam para fiscalizar e fomentar o desenvolvimento de atividades fitossanitárias e promover a inovação tecnológica do setor agrícola em sanidade vegetal.
É cediço que os órgãos competentes carecem de infraestrutura para realizar as atividades de sua competência, principalmente no âmbito das fiscalizações e da análise de pedidos de registro e alterações pós registros de pesticidas. A utilização dos recursos do Fundo, prioritariamente, em projetos relacionados à área, certamente seria de grande valia a todo o setor agrícola brasileiro e aos consumidores de produtos agrícolas, além de melhorar a percepção positiva dos sistemas de produção em uso no Brasil, por parte dos importadores dos nossos produtos.
Além disso, considerando que o Ministério da Agricultura e Pecuária é ainda o coordenador do processo de avaliação dos agrotóxicos e o responsável por criar e coordenar os sistemas informatizados estabelecidos pela nova lei, pode-se afirmar que veto proposto obsta que o órgão registrante tenha outras fontes de recursos para o desenvolvimento de atividades que permaneceram sob sua competência. Ipso facto, o veto não faz jus a uma racionalidade econômica de prestação de serviços públicos a entes privados.
O CCAS continuará trabalhando para esclarecer a sociedade sobre as alterações estabelecidas com o novo marco regulatório e, ainda, contribuindo para uma futura rediscussão dos vetos presidenciais pelo Congresso Nacional.